segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

NO ANO PASSADO...

Já repararam como é bom dizer "o ano passado"? É como quem já tivesse atravessado um rio, deixando tudo na outra margem...Tudo sim, tudo mesmo! Porque, embora nesse "tudo" se incluam algumas ilusões, a alma está leve, livre, numa extraordinária sensação de alívio, como só se poderiam sentir as almas desencarnadas. Mas no ano passado, como eu ia dizendo, ou mais precisamente, no último dia do ano passado deparei com um despacho da Associated Press em que, depois de anunciado como se comemoraria nos diversos países da Europa a chegada do Ano Novo, informava-se o seguinte, que bem merece um parágrafo à parte:

"Na Itália, quando soarem os sinos à meia-noite, todo mundo atirará pelas janelas as panelas velhas e os vasos rachados".

Ótimo! O meu ímpeto, modesto, mas sincero, foi atirar-me eu próprio pela janela, tendo apenas no bolso, como uma explicação para as autoridades, um recorte do referido despacho. Mas seria levar muito longe uma simples metáfora, aliás praticamente irrealizável, porque não resido em apartamento. E, por outro lado, metáforas a gente não faz para a Polícia, que só quer saber de coisas concretas. Metáforas são para aproveitar em versos...

Atirei-me, pois, metaforicamente, pela janela do tricentésimo-sexagésimo-quinto andar do ano passado.
Morri? Não. Ressuscitei. Que isto da passagem de um ano para outro é um corriqueiro fenômeno de morte e ressurreição - morte do ano velho e sua ressurreição como ano novo, morte da nossa vida velha para uma vida nova.

sábado, 29 de dezembro de 2018

COMO ANTIGAMENTE (QUASE)

De uns dias para cá as crianças aqui de casa (re)descobriram a brincadeira de esconde esconde, de bola (esta sempre) e de bicicleta. Não como eu mesmo brincava, correndo pelas ruas, me escondendo na vizinhança, no escuro, em todo lugar, nos pastos que eram nossos campos. É aqui dentro de casa mesmo, correndo pela casa, atrás da casa, pela cozinha, pelos quartos. Sem sair dos olhos e do domínio, nem um palmo para fora do portão, são as minhas ordens (como se mandasse). Não escrevo isso para falar de saudosismo, lembranças, mas para mostrar que as crianças ainda brincam com algo que não seja eletrônico, algo que para eles hoje é a novidade. Eles correm, gritam (e como gritam), saem as gargalhadas, doces e inocentes da infância, emburram, mas se divertem e por instantes,  talvez horas, se afastam do celular, do PC, da TV, que também são diversões que aliadas as "brincadeiras de antigamente" deixam até um gostinho de quero mais. 

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

FILOSOFIA PARA APRENDER E ENSINAR

Quem de nós não sonhou em ter um professor inspirador, descontraído, sábio, envolvente e que tratasse a gente como gente assim como Merlí, o protagonista da série catalã de mesmo nome que virou um dos maiores sucessos da Netflix? Em um outro filme mais antigo, Sociedade dos Poetas Mortos, encontramos também o personagem John Keating, imortalizado por Robin Williams. Ambos conquistam os alunos com uma pedagogia pouco ortodoxa e muito humana porque não se distanciam dos dilemas, das angústias e da realidade dos alunos. Os dois, cada um à sua maneira, dominam a arte de fazer os jovens pensarem por conta própria e os preparam para lidar com questões universais da nossa existência e da sociedade.
Não há nada mais importante para que os jovens aprendam do que ajudá-los a fazer conexões entre a a vida real e o que é ensinado em sala de aula. Por isso o aprendizado por projetos é grande tendência atual. Dessa forma, os alunos aprendem a partir da resolução de situações reais. No caso dos projetos, a partir de problemas cotidianos, surgem os questionamentos e, com eles, nas tentativas e nos erros, as soluções são criadas e as respostas aparecem. As crianças e jovens têm que aprender a questionar as coisas de maneira desafiadora e criativa, como fazem os filósofos, pensando por vários pontos de vista. E só então formar uma opinião, elaborar um argumento e defender uma ideia.
Muito tem se discutido, a partir da reforma do Ensino Médio, sobre a retirada do currículo da disciplina de Filosofia como matéria obrigatória para todos os alunos. Eu, sinceramente, não acho que isso seja o mais importante. Pois quem deve ter Filosofia na sua base de formação para poder dar uma boa aula é o professor. São eles que deveriam dominar os conceitos dos principais filósofos para instigar os alunos a pensar e até desafiar o raciocínio do próprio professor.
Na ficção, Merlí faz isso de um jeito impecável. Para isso, relaciona temas cotidiano a uma escola filosófica ou a um grande pensador. É uma sacada fantástica. Afinal, a Filosofia é uma ferramenta para se discutir as grandes questões: a vida e a morte, a ética, a moral, a igualdade, a justiça, o amor, o individual e o coletivo, enfim, tudo o que nos faz humanos. Por meio dessas reflexões é que podemos encontrar maneiras de lidar melhor com as pessoas e com nós mesmos e, dessa forma, evoluir
O outro aspecto que faz de Merlí um professor adorável e um personagem memorável é o fato de ele ser de carne e osso. Inúmeras vezes ele se envolve em conflitos, tem dúvidas, vive amores fervorosos, enfim, mostra-se vulnerável como qualquer mortal. Este é outro ponto muito importante para um professor se aproximar do aluno: ser ele mesmo. A auto-estima de um professor faz com que ele possa se mostrar para os alunos de forma transparente e verdadeira. Sem a pretenção de parecer um super herói. Isso aproxima, ajuda a criar vínculo. Uma pessoa assim é muito mais cativante, envolvente e eficiente do que alguém que fica se protegendo o tempo todo e que quer ser colocado no pedestal. Por isso, eu defendo fortemente incluir no currículo de Pedagogia uma boa carga de conteúdos que levem o professor a se conhecer melhor.

sábado, 15 de dezembro de 2018

CINCO TÓPICOS SOBRE MUDANÇA

(...) O primeiro seria a necessidade de abandonarmos o paradigma motivacional na comunicação corporativa (na educação também, mas deixemos isso para outro momento).
A necessidade de motivar as pessoas o tempo todo nasce da própria estrutura produtiva burguesa: acreditar na mudança significaria melhor produtividade, mais otimismo, menos tristeza, mais riqueza.
O capitalismo precisa de pessoas felizes e que creem nos avanços. O problema é que apenas os doentes conseguem ser felizes "o tempo todo".
O problema é que o paradigma motivacional implica debilidade cognitiva, intelectual e afetiva, quando usado em demasia, como é o caso em questão.
Seres humanos podem não saber o tempo todo o que é fake news ou verdade, mas, quando mentimos demais para eles, eles chegam a um momento em que são obrigados ou a entrar em crise (justamente o que o paradigma motivacional teme e reprime com todas as forças) ou a aceitarem que optaram pelo retardo mental (o que em si, nalgum momento posterior, poderá gerar alguma forma de crise).
Os seguintes tópicos devem ser vistos à luz deste primeiro como fundamento.
Um segundo tópico é a imposição da felicidade o tempo todo, o que, por sua vez, implica um aumento de medicamentação. A mentira indiscriminada como paradigma é, seguramente, patogênica. A solução é se dopar em alguma medida.
O contrário aqui não é a "felicidade da verdade", mas o vínculo delicado entre verdade e saúde mental, de alguma forma. Seja nos jovens e no seu aumento de uso de ansiolíticos, seja nos mais velhos e na sua depressão. A destruição da libido parece ser uma escolha política para garantir um mundo mais seguro e correto.
Aliás, um terceiro tópico de mudança que nos desafia é a crescente diminuição da atividade sexual entre os mais jovens. A escolha pelo combate à ansiedade implica uma diminuição da própria libido, uma vez que ansiedade e libido são irmãs. Trocando em miúdos: se você não quiser ser brocha, terá que ser um pouco infeliz.
Um quarto tópico, decorrente dos anteriores, é o caráter redentor do uso de um pouco de verdade na comunicação com as pessoas. Dizem a elas, por exemplo, que os algoritmos as conhecem melhor do que elas mesmas e que, como gosta de falar o historiador israelense Yuval Harari, de forma um pouco dramática, logo seremos hackeados por esses mesmos algoritmos, que nos dirão o que queremos e o que pensamos, por meio das mídias sociais crescentes.
Esse discurso pode ser mais importante do que ficar repetindo milhares de vezes que as mídias sociais têm um caráter democrático e revolucionário e que o avanço da inteligência artificial criará um mundo de renda mínima para as pessoas ou que elas criarão obras como as de Shakespeare a cada manhã.
Sem trabalho não há dignidade, e adultos que se acostumam a viver "de graça" sempre têm problema de caráter. O hackeamento a que se refere Harari nasceria do uso de algoritmos mapeando nossos perfis de consumo e de postagens.
Um quinto tópico é o crescimento inexorável da solidão no mundo. O tédio será um dos afetos essenciais num "mundo Netflix  + iFood" como paradigma cotidiano. As pessoas viverão mais e terão menos família a sua volta. As pessoas estarão ocupadas sendo felizes e não cuidando de idosos. Empresas oferecerão serviços no lugar dos "afetos antigos". E a solidão será um problema de saúde pública, fruto da ampliação da saúde em larga escala.
Luiz Felipe Pondé

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Há algo nas segundas-feiras que desperta nas pessoas a ideia de abstinência

As estatísticas provam, brasileiro não transa nas segundas-feiras. Segunda é o dia da semana com o maior índice de TV ligadas no País. Não há nada na tradição judaico-cristã que proíba o sexo às segundas, como há com outros tipos de comidas. Simplesmente se convencionou que segunda-feira não é dia para isso. Ou, mais especificamente, aquilo. 
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Os conselheiros matrimoniais conhecem casos em que o tabu foi desrespeitado.
– Ele quis me forçar a fazer sexo com ele, doutor.
– Bem, como ele é seu marido, não creio que “forçar” seja o termo adequado...
– Era segunda-feira, doutor! 
– TARADO!
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Há algo nas segundas-feiras que desperta nas pessoas a ideia de abstinência. Remorso, talvez. A velha ética do trabalho nos compelindo à autoflagelação pelo pecado de ternos folgado por dois dias. Já são anedotas as histórias de pessoas que começam dietas – ou abandonam o cigarro, param de jogar e fazem outra tentativa de ler Grande Sertão: Veredas – todas as segundas-feiras.
Geralmente a virtude não dura até quarta-feira, mas a compulsão existe. 
Você tem até o fim da noite de domingo para fazer tudo que pretende abandonar na segunda-feira, o que só aumenta seu remorso. Para não falar na ressaca.
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A lei que transferiria para a segunda-feira todos os feriados nacionais (o projeto existe, juro) seria o primeiro de um plano mais amplo, que é o de abolir a segunda-feira da consciência nacional, depois da semana inglesa, a semana brasileira. Como levaria algum tempo para a gente se acostumar com a nova semana, as segundas-feiras passariam a ser uma espécie de zona cinzenta entre a folga e a rotina, um amortecedor nessa curiosa divisão das nossas vidas entre dias úteis e inúteis. A segunda seria um dia para reflexão, para a nação reencontrar sua cabeça e para você se reconciliar com seus pecados.
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E tudo começaria de novo, na primeira hora de terça-feira.




Luis Fernando Verissimo