quinta-feira, 15 de novembro de 2018

O PRESENTE É UM CADAFALSO QUE SE ABRE SOB NOSSOS PÉS TODOS OS DIAS*

Quando eu nasci, em 1970, o Brasil ainda era “o país do futuro”. O vaticínio, feito em 1941 pelo escritor austríaco Stefan Zweig, nos serviu por décadas ora como anestésico, ora como elixir. Vivíamos sob uma ditadura, mas no futuro... Tínhamos hiperinflação, plano econômico atrás de plano econômico, corta zero, muda a moeda, mas no futuro...
Os “teasers” do tal futuro podiam ser vislumbrados pelo observador atento ao longo da nossa história. Na natureza em que “em se plantando, tudo dá”, na “pena da galhofa” e na “tinta da melancolia” de um Machado de Assis, no saxofone de um Pixinguinha, nos dribles de um Pelé.
Pelé, aos 17 anos, recebendo a taça do rei da Suécia, era uma prévia e uma síntese da glória que o futuro nos reservava: a Europa, velha e fria, se curvando à originalidade tropical. Ver a seleção brasileira vencer times europeus era, nas palavras do cineasta Pier Paolo Pasolini, enxergar o “futebol poesia” vencendo o “futebol prosa”. Eis a lição que o Brasil ensinaria aos povos: que a vida poderia ser vivida não na cadência apolínea e burocrática de um romance realista, mas com a potência dionisíaca de uma estrofe.
Em algum momento da década passada, pareceu que o futuro tinha chegado. Que o Lula, seguindo o legado econômico do FHC e, “pela primeira vez na história deste país” levando a sério a tragédia social, havia colocado o Brasil nos eixos. Achamos que estava respondida a pergunta do Caetano Veloso em “‘Vamo’ comer”: “E quem vai equacionar as pressões/Do PT, da UDR/E fazer dessa vergonha/Uma nação?”.
Em 2009, a revista inglesa The Economist fez a famigerada capa do Cristo Redentor subindo como um foguete e a manchete “O Brasil decola”. Agora era só fechar a zaga e administrar a vitória, pensamos; demos uma piscada e ao acordarmos estava 7 x 1.
Passou rápido, nosso futuro. Durou o quê? Cinco anos? Três? Em 2013 —quatro anos depois da decolagem, portanto— a Economist colocou na capa o Cristo voando desgovernado com a manchete “O Brasil estragou tudo?”. De 2013 pra frente o desgoverno só piorou. Mesmo quem bateu panela pelo impeachment ficou de queixo caído com o espetáculo macabro da votação —preparação perfeita para o cortejo de Gedéis, Maruns, Moreira Francos & cia que viria a seguir. 
Por aquela época, ressurgiu nas redes sociais uma frase do Millôr Fernandes. “O Brasil
tem um enorme passado pela frente”. Aí pega fogo no museu, 200 anos de trabalho e boa parte dos 20 milhões de itens viram fumaça, literalmente —e parece que nem o passado, mais, nós temos.
Ao ver o museu queimando minha temperatura foi subindo e fui entrando numa espécie de delírio febril. Aquele futuro do Stefan Zweig não existe mais. O presente é um cadafalso que se abre sob nossos pés todos os dias —só para descobrirmos que embaixo tem uma guilhotina e diante há um pelotão de fuzilamento. E então o passado arde em chamas. 
É como se, não bastasse a pilhagem das quadrilhas de terno ou fuzil, enormes traças metafísicas estivessem roendo o país. Como se em qualquer manhã dessas nós fôssemos acordar e perceber uma estranha poeira no chão. Então tocaremos a parede e compreenderemos que ela está se esfacelando.
Todas as paredes. E também as árvores. E o coqueiro que dá coco. E as aves que aqui gorjeiam. E nossos rostos faceiros. E nossos corpos inzoneiros. E até o fim da tarde tudo terá virado pó. E o pó será levado pelo vento. E o sonho se esvai. E o Brasil nunca terá existido. Nos resta torcer para que 2019 seja o melhor ano de nossas vidas! Será?

*TEXTO ADAPTADO