terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Pais, façam o favor de serem chatos

Um ginecologista conversa com sua paciente enquanto a examina. Seria uma cena corriqueira, se não víssemos seu rosto emergir dentre as pernas da mulher com um cigarro na boca.
São os anos 1960 e a cena da série “Mad Men” (2007-2015, disponível na Netflix) ilustra a onipresença do cigarro no mundo àquela época.
Enquanto a propaganda do Marlboro associava cigarro à masculinidade, saúde e natureza, as pesquisas médicas denunciavam que a terra “onde os homens se encontram” estava mais para “fazenda branca” do que para paraíso dos machões.
Pesquisar os efeitos, admiti-los publicamente, lutar contra os interesses financeiros dos gigantes do tabaco —indústria e propaganda—, implementar medidas de saúde pública para mudança de hábito e diminuição de danos, lutar contra o próprio vício, enfim, tratou-se e trata-se de um longo e interminável processo.
Será que esse exemplo pode nos ajudar a pensar sobre o atual vício nas redes virtuais? Pesquisas e experiências clínicas se acumulam mostrando os efeitos alarmantes do mergulho no mundo virtual sem mediação e sem restrições: depressão, dificuldades nas relações sociais, sexuais, escolares, distúrbios psíquicos, somáticos, adição, empobrecimento simbólico, violência.
As crianças e o vício na internet
As crianças e o vício na internet - Myst - stock.adobe.com
A pesquisa internacional TIC Kids On-line estuda, desde 2012, riscos e oportunidades que o uso da internet oferece a crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos.
Vale ressaltar que as mídias, diferentemente de outros vícios, são ferramentas fantásticas para a aquisição de conhecimento, para a realização de tarefas cotidianas e para certo tipo de interação social.
Tanto pior, pois fica ainda mais difícil discriminar joio e trigo, quando as vantagens são evidentes e inegáveis. Mas os riscos também o são e, se perdermos mais tempo desbundados ou inibidos diante da revolução virtual é porque nos omitimos da nossa responsabilidade de apresentar paulatinamente o mundo às crianças.
Uso restrito e mediado durante toda a infância, controle de conteúdo, compartilhamento de experiências com os pais, regras de uso mantidas mesmo sob protesto das crianças e aquisição de liberdade gradual são dicas apontadas por especialistas, mas que pais, mães e educadores mais investidos não teriam dificuldade de deduzir sozinhos. 
Pais se mostram inibidos por não dominarem as ferramentas e, ao mesmo tempo, por se encontrarem tão ou mais abduzidos pelas novidades virtuais quanto os filhos.
É muito difícil segurar a onda de uma criança quando ela vê que à sua volta “todos os outros pais deixam” ou está “todo mundo usando”. Sinal de que falta uma ação coletiva para enfrentar os riscos comprovados da virtualidade precoce e desassistida.
Já sabemos que as redes virtuais fazem muito mal, que seus inventores não deixam os próprios filhos usarem, que as pesquisas apontam a necessidade de mediar e restringir o uso. O que esperamos? Que todos os outros assumam seu papel, antes de o assumirmos nós mesmos?
Se cada pai/mãe fizesse o servicinho sujo que lhe cabe, de aguentar dizer não —e a cara feia decorrente—, provavelmente sobrariam menos perrengues para quem assume a árdua tarefa de educador.

Texto de: Vera Iaconelli
Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.


terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Risco de andar para trás

Sei que é difícil de notar, que o desânimo é enorme especialmente neste ano, mas é fato que a educação pública no Brasil já foi muito pior. Não, não estou comparando com o século passado, quando pequena quantidade da população tinha acesso à escola e era fácil ter bom ensino. Comparo com o começo da década de 2010, quando o País tinha feito o esforço – louvável – de incluir quase a totalidade das crianças de 6 a 14 anos na escola.
Mas foi também nessa década que começamos a falar que não bastava ter vaga para estudar, era preciso aprender. E ainda que passamos a nos preocupar com a diferença entre ricos e pobres e a imensa desigualdade educacional. Economistas se interessaram nos últimos anos pela educação e estudamos muito as razões do nosso fracasso, propusemos soluções, olhamos para as evidências mundo afora e nos surpreendemos com as experiências brasileiras de sucesso.
E o resultado é que continuamos mal, mas nossas crianças entram em 2020 sabendo mais do que sabiam em 2010. O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) foi criado em 2008 e, depois disso, só melhora. Sim, ainda temos um grande desafio no ensino médio, que pouco avança, mas os otimistas acreditam que o bom desempenho das crianças menores vai ser carregado com elas até o fim da escola. 
Isso só não aconteceu até agora porque é preciso mudar também a escola que se oferece para adolescentes. O ensino tem de se aproximar deles, que vivem em uma cultura digital, têm acesso a todo tipo de informação, mas ainda precisam ficar parados diante de uma lousa, olhando o professor falar coisas que não lhes interessam. Qualquer avanço feito entre crianças se perde depois nessa sala de aula ultrapassada. A mudança do ensino médio é uma das maiores tarefas para a década que entra.
Mas, voltando à anterior, as avaliações – algo que praticamente inexistia no início deste milênio e hoje está muito fortalecido – mostram claramente a evolução do aprendizado das crianças. O Ideb medido entre alunos de 1.º ao 5.º ano passou de 4,6 em 2009 para 5,8 em 2017, último ano disponível. E esses 5,8 estão acima da meta estabelecida pelo Ministério da Educação para 2019. Destrinchando os índices, vemos que quando começamos a década 28% das crianças de 10 anos aprendiam o adequado em Português e hoje estamos com cerca de 60%.
Esses saltos foram maiores ainda regionalmente. O País começou a se preocupar com resultados tornados públicos. Prefeitos, secretários e governadores foram em busca do que fazer para melhorar e crescer no Ideb. E aí surgiram sucessos como Ceará e Pernambuco, Estados que saíram na década passada de resultados desastrosos na educação para as primeiras colocações nos rankings de aprendizado nacionais atualmente. Em menos de dez anos, os nordestinos viraram referência em educação e agora ensinam o Brasil.
Há criticas às avaliações em massa e a um sistema meritocrático, mas isso ajudou muito o Brasil a acordar para a educação nos últimos anos. Cobrar resultado, indignar-se. E neste 2019, tão desanimador para a área, a população foi às ruas, pela primeira vez em anos, por causa da educação. Quando o governo Bolsonaro cortou verbas das universidades públicas, exaltou a perseguição a professores por suposta doutrinação, a população gritou.
Mas é preciso mais. O Brasil tem de olhar para o Brasil. O MEC tem de olhar para o Brasil. Hoje já há experiências incríveis em vários Estados e cidades, não dá para achar que a solução são escolas militares. Não dá para perder um minuto sequer com embates ideológicos. Infelizmente, corremos hoje um grande risco de arruinar nosso pequeno avanço da década que termina e andar para trás. 

Renata Cafardo*, O Estado de S.Paulo
22 de dezembro de 2019 | 05h00

domingo, 15 de dezembro de 2019

O PAPEL DA ESCOLA

A escola tem passado por maus momentos. Nunca antes a instituição escolar brasileira foi tão atacada. Temos o Escola sem Partido, movimento político que acredita que o número de professores que busca atrair alunos a determinadas correntes ideológicas é enorme. Eles existem, mas não são tantos assim. Já o contingente de professores e alunos que sofrerá grandes consequências – fora os que já sofreram – resultantes dos princípios desse movimento será muito maior em pouco tempo. Se já não for.
Temos um bordão que foi, e ainda é, socialmente difundido por muitas pessoas e repetido por diversas escolas de que a sua função é a de instruir porque cabe à família educar. Quem repete esse conceito se esquece que, em família, os mais novos ocupam o papel social de filho, mas que, fora da família, exercem outras funções. Além disso, instruir e educar são dois conceitos inseparáveis: ao usar um deles, se aplica, necessariamente, o outro.
Temos também a educação domiciliar, que tem crescido. Pais de milhares de crianças decidiram deixar seus filhos fora da escola para ensinar os conteúdos escolares em casa. Deixam também os filhos longe do encontro com a diversidade de todos os tipos, é claro.
Como se não bastasse, pelo jeito agora teremos também um canal de atendimento, a ser criado pela ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, segundo notícias que li, para que professores denunciem – denunciem! – pais que não acompanham a vida escolar dos filhos. Agora, sim: a sociedade, em guerra declarada à escola, quer colocar pais contra professores e vice-versa. Em vez disso, seria importante entendermos melhor as funções da escola para defendê-la!
Quando uma criança nasce, a família se torna responsável por acompanhar seu desenvolvimento e ensinar o básico para que aprenda a conviver com os outros. Falar, ouvir, comunicar-se, fazer refeições, vestir-se adequadamente, colaborar. Esse é o processo que se chama socialização primária e coloca a criança no processo civilizatório. 
Ocorre que, em casa, todas as famílias têm as próprias regras e modos de viver e isso é possível porque a família vive na intimidade do espaço privado. E mais: toda a influência familiar que os pais podem passar aos filhos se deve à afetividade. O mundo fora de casa é bem diferente: tem suas próprias regras, gente de todo tipo, tem também ambientes hostis – algumas famílias também têm hostilidade com as crianças –, e demanda conhecimentos específicos para ser compreendido. Para isso serve a escola: colaborar para que os alunos compreendam melhor o mundo – e possam viver melhor – à luz do conhecimento sistematizado, para que eles aprendam a conviver com os diferentes de forma respeitosa. É a chamada socialização secundária.
A escola é a instituição que faz a passagem da família para o mundo. Não é fácil. Os mais novos tentam reproduzir na escola o que aprenderam em casa ou lá fazer o que não podem em casa. Por isso, a escola precisa ser cuidada, protegida. Professores e pais precisam ser parceiros sem misturar papéis. Chamamos de parceria boa quando os pais atendem às demandas que a escola encaminha a eles. Isso não é parceria. Quem frequenta a escola sabe que é comum ouvir a respeito de “pais ausentes” sobre os que não comparecem às reuniões por ela convocadas, sem ouvir a disponibilidade deles, ou de pais que não fazem a lição de casa com os filhos. 
Pois saiba que pai ausente em reunião escolar pode ser muito presente na vida dos filhos, e presente às reuniões pode não apresentar interesse verdadeiro pelo filho. A criança, ao crescer, enfrentará inúmeras dificuldades na vida, portanto deve ser estimulada a enfrentar suas próprias batalhas. E a escola é a primeira que ela deve enfrentar sozinha, sem a ajuda dos pais. Isso é o tal preparo para o futuro, para a vida.

TEXTO DE: Rosely Sayão, O Estado de S.Paulo
15 de dezembro de 2019