quarta-feira, 22 de abril de 2020

Talvez tenha chegado a hora de ensinar os processos que envolvem tarefas

Você já assistiu ao filme Feitiço do Tempo? O protagonista, o homem do clima/tempo de um canal de televisão, vai a uma pequena cidade para fazer uma reportagem sobre uma marmota que faz a previsão do tempo, e realiza esse compromisso profissional visivelmente contrariado. O repórter é prepotente, rabugento, mal-humorado, grosseiro e sem compaixão e empatia em seus relacionamentos. Mas aí, ocorre o inesperado: ele acorda todos os dias no mesmo dia em que chegou à cidade e passa pelos mesmos fatos já vividos que o contrariaram tanto. Inicialmente, ele responde ao feitiço tornando suas características ainda mais fortes: passa de grosso a violento, rouba, mente, tenta acabar com a própria vida, mas nada lhe devolve a possibilidade de superar aquele dia. Até que ele escolhe ser melhor do que já fora naquele dia que não termina nunca. Mas, qual a relação do filme com nossas vidas na atualidade?
Para começar, a sensação de muitas mães e pais de que todo santo dia acordamos no mesmo dia. Sabemos os fatos que nos aguardam; só não sabemos como estará a dinâmica familiar com mudanças de humores de seus integrantes. Vamos pensar em como usar esses dias parecidos, mas não iguais, em favor dos mais novos? Podemos começar com a tão falada autonomia.
Para começo de conversa, não vamos confundir a capacidade de crianças e adolescentes de realizar tarefas sozinhos: isso não é autonomia. Autonomia seria, mais ou menos, a conquista da capacidade de planejar e realizar por conta própria o necessário para permitir que a vida caminhe da melhor forma possível. E como estamos todos interligados – e a pandemia nos mostrou isso – não teremos nunca autonomia completa e absoluta.
Utilizei acima a palavra conquista para que os pais não fiquem com a ideia de que eles precisam dar autonomia aos filhos. São os mais novos que precisam conquistá-la, ou seja, precisam mostrar que já são capazes de se organizar em determinadas situações e se responsabilizar por elas. Quando o filho adolescente deve ter autonomia para viajar só com colegas? Somente após cumprir, mais de uma vez, horários previamente combinados com os pais quando sair na cidade em que mora, quando se mostrar responsável com o uso – ou o não – de bebidas alcoólicas nas festas, quando aceitar a incumbência de atender ao celular sempre que os pais o chamarem. Percebem que, nesse caso, o jovem pode conquistar sua autonomia, e não ganhá-la?
Agora é uma boa hora para dar aos filhos a oportunidade de eles conquistarem autonomia em casa, não é? Principalmente porque a maioria dos pais, independentemente de classe social, sequestraram as melhores possibilidades de os filhos avançarem, na prática, nos processos de autonomia. Por quê?
Porque escolhemos fazer por eles muito daquilo que eles já poderiam – e deveriam – fazer por conta própria. Considerando o processo de desenvolvimento dos mais novos, tudo o que eles já podem fazer sozinhos e alguém faz por eles, acaba por atrapalhar seu crescimento.
Talvez tenha chegado a hora de ensinar a eles os processos que envolvem atividades ou tarefas. Tomar banho, por exemplo, é mais do que tirar a roupa e ir para debaixo do chuveiro: envolve separar a roupa que será vestida após o banho, colocar a roupa usada no local adequado para ser lavada, limpar o banheiro, colocar toalha para secar. 
Quando sugerimos a uma mãe que leve o filho pra cozinha, invariavelmente dizem: “Nem pensar, deixam a cozinha muito suja.”. Mas limpar faz parte do processo de ir para a cozinha! Temos lembrado desses detalhes preciosos que mostram ao filho que realizar uma atividade agrega uma série de tarefas no conjunto? Que tal aproveitar esse feitiço do tempo em que nos vemos para investir nesses ensinamentos? 

sábado, 11 de abril de 2020

Compaixão e sensibilidade para se colocar no lugar do outro são fundamentais

Crianças e adolescentes estão confinados há duas semanas. Sem colegas, sem poder brincar em outros locais, sem a possibilidade de sair com amigos para festas, viajar, eles estão, agora, mais do que confinados: estão isolados de seus relacionamentos regulares.
No início, com o fechamento das escolas, parte das crianças e adolescentes comemorou. Difícil para eles não identificar esse período com férias. Nos primeiros dias, muitas famílias entraram quase que em estado de hiperatividade com as crianças. Foi um tal de inventar brincadeiras, procurar dicas na internet e trocar experiências com outras famílias que só vendo, o que tornou os dias bem ocupados para todos. A maioria das crianças respondeu positivamente, e o fato animou as famílias.
Mas os dias foram passando: uma semana, duas, trancados em casa, e o que parecia estar funcionando até então deixa de ter tanta eficácia. Hoje, é mais frequente ver crianças cansadas, irritadas e entediadas com tantas brincadeiras e pais sem criatividade para buscar estratégias diferentes e já com pouca paciência. Foi só então que se tornaram evidentes as emoções que crianças e adultos estão experimentando. Medo, ansiedade, angústia e, principalmente, insegurança e tensão. Talvez esse tenha sido o motivo principal de tentar ocupar corpo e mente de todos: evitar o enfrentamento de nossos sentimentos. Bem, agora precisamos lidar com tudo isso da melhor forma. 
Com crianças menores, não adianta muito tecer esclarecimentos racionais para tentar convencê-los a se aquietarem. Funciona bem mais buscar o plano simbólico, bem trabalhado nos contos de fadas. Ao ouvir essas histórias, a criança se defronta com mundos imaginários repletos de problemas e conflitos e, ao mesmo tempo, vislumbra diferentes soluções encontradas pelos personagens. Desse modo, ela pode aquietar algumas de suas emoções. 
Deixar as crianças um pouco sozinhas ajuda muito. Afinal, muitas delas podem estar exaustas com tantas atividades, mesmo sem saber disso. Claro que, inicialmente, elas podem reclamar, mas, aos poucos e com o acolhimento amoroso e a colaboração dos pais, podem vir a conseguir estar com elas mesmas por alguns períodos do dia, mesmo que curtos. Para preparar as crianças para esses períodos de maior tranquilidade, meditação e ioga ajudam bastante. Na internet há orientações para conduzir as crianças nessas práticas. Você encontra boas dicas em infanciazen.com.br/videos.
E os adolescentes, como estão nesse período de isolamento? Precisamos entender que essa situação os colocou de volta ao passado. O que significa estar sob a responsabilidade dos pais 24 horas. Não é à toa que os comportamentos deles reflitam o descontentamento de serem obrigados a viver nessa situação. E como eles são diferentes entre si e diferentes deles mesmos a cada dia, as reações são variáveis. Alguns se isolaram no quarto ou na internet para se afastar da família, outros entristeceram fortemente, outros insistem que irão sair de qualquer maneira, e outros, ainda, buscam aqueles idiotas desafios na internet. E é bom que pais saibam que já existem desafios perigosos rolando por aí.
Para ajudar o jovem nesse momento, podemos, por exemplo, procurar maneiras que permitam que ele se sinta útil à sociedade. Uma rápida busca na internet permite encontrar as mais diversas campanhas que precisam de voluntários virtuais. Que tal essa dica? Ajuda, inclusive, o jovem a se perceber como participante de uma sociedade.
Não está fácil para nós, adultos, lidar com nossas questões e as deles também. Por isso, amorosidade, generosidade, compaixão e sensibilidade para se colocar no lugar do outro são fundamentais. Vamos com coragem e firmeza, minha gente! E sem culpas, por favor. É a primeira vez de todo mundo, afinal. 

Rosely Sayão, O Estado de S.Paulo
05 de abril de 2020 | 05h00