terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Pais, façam o favor de serem chatos

Um ginecologista conversa com sua paciente enquanto a examina. Seria uma cena corriqueira, se não víssemos seu rosto emergir dentre as pernas da mulher com um cigarro na boca.
São os anos 1960 e a cena da série “Mad Men” (2007-2015, disponível na Netflix) ilustra a onipresença do cigarro no mundo àquela época.
Enquanto a propaganda do Marlboro associava cigarro à masculinidade, saúde e natureza, as pesquisas médicas denunciavam que a terra “onde os homens se encontram” estava mais para “fazenda branca” do que para paraíso dos machões.
Pesquisar os efeitos, admiti-los publicamente, lutar contra os interesses financeiros dos gigantes do tabaco —indústria e propaganda—, implementar medidas de saúde pública para mudança de hábito e diminuição de danos, lutar contra o próprio vício, enfim, tratou-se e trata-se de um longo e interminável processo.
Será que esse exemplo pode nos ajudar a pensar sobre o atual vício nas redes virtuais? Pesquisas e experiências clínicas se acumulam mostrando os efeitos alarmantes do mergulho no mundo virtual sem mediação e sem restrições: depressão, dificuldades nas relações sociais, sexuais, escolares, distúrbios psíquicos, somáticos, adição, empobrecimento simbólico, violência.
As crianças e o vício na internet
As crianças e o vício na internet - Myst - stock.adobe.com
A pesquisa internacional TIC Kids On-line estuda, desde 2012, riscos e oportunidades que o uso da internet oferece a crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos.
Vale ressaltar que as mídias, diferentemente de outros vícios, são ferramentas fantásticas para a aquisição de conhecimento, para a realização de tarefas cotidianas e para certo tipo de interação social.
Tanto pior, pois fica ainda mais difícil discriminar joio e trigo, quando as vantagens são evidentes e inegáveis. Mas os riscos também o são e, se perdermos mais tempo desbundados ou inibidos diante da revolução virtual é porque nos omitimos da nossa responsabilidade de apresentar paulatinamente o mundo às crianças.
Uso restrito e mediado durante toda a infância, controle de conteúdo, compartilhamento de experiências com os pais, regras de uso mantidas mesmo sob protesto das crianças e aquisição de liberdade gradual são dicas apontadas por especialistas, mas que pais, mães e educadores mais investidos não teriam dificuldade de deduzir sozinhos. 
Pais se mostram inibidos por não dominarem as ferramentas e, ao mesmo tempo, por se encontrarem tão ou mais abduzidos pelas novidades virtuais quanto os filhos.
É muito difícil segurar a onda de uma criança quando ela vê que à sua volta “todos os outros pais deixam” ou está “todo mundo usando”. Sinal de que falta uma ação coletiva para enfrentar os riscos comprovados da virtualidade precoce e desassistida.
Já sabemos que as redes virtuais fazem muito mal, que seus inventores não deixam os próprios filhos usarem, que as pesquisas apontam a necessidade de mediar e restringir o uso. O que esperamos? Que todos os outros assumam seu papel, antes de o assumirmos nós mesmos?
Se cada pai/mãe fizesse o servicinho sujo que lhe cabe, de aguentar dizer não —e a cara feia decorrente—, provavelmente sobrariam menos perrengues para quem assume a árdua tarefa de educador.

Texto de: Vera Iaconelli
Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.


terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Risco de andar para trás

Sei que é difícil de notar, que o desânimo é enorme especialmente neste ano, mas é fato que a educação pública no Brasil já foi muito pior. Não, não estou comparando com o século passado, quando pequena quantidade da população tinha acesso à escola e era fácil ter bom ensino. Comparo com o começo da década de 2010, quando o País tinha feito o esforço – louvável – de incluir quase a totalidade das crianças de 6 a 14 anos na escola.
Mas foi também nessa década que começamos a falar que não bastava ter vaga para estudar, era preciso aprender. E ainda que passamos a nos preocupar com a diferença entre ricos e pobres e a imensa desigualdade educacional. Economistas se interessaram nos últimos anos pela educação e estudamos muito as razões do nosso fracasso, propusemos soluções, olhamos para as evidências mundo afora e nos surpreendemos com as experiências brasileiras de sucesso.
E o resultado é que continuamos mal, mas nossas crianças entram em 2020 sabendo mais do que sabiam em 2010. O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) foi criado em 2008 e, depois disso, só melhora. Sim, ainda temos um grande desafio no ensino médio, que pouco avança, mas os otimistas acreditam que o bom desempenho das crianças menores vai ser carregado com elas até o fim da escola. 
Isso só não aconteceu até agora porque é preciso mudar também a escola que se oferece para adolescentes. O ensino tem de se aproximar deles, que vivem em uma cultura digital, têm acesso a todo tipo de informação, mas ainda precisam ficar parados diante de uma lousa, olhando o professor falar coisas que não lhes interessam. Qualquer avanço feito entre crianças se perde depois nessa sala de aula ultrapassada. A mudança do ensino médio é uma das maiores tarefas para a década que entra.
Mas, voltando à anterior, as avaliações – algo que praticamente inexistia no início deste milênio e hoje está muito fortalecido – mostram claramente a evolução do aprendizado das crianças. O Ideb medido entre alunos de 1.º ao 5.º ano passou de 4,6 em 2009 para 5,8 em 2017, último ano disponível. E esses 5,8 estão acima da meta estabelecida pelo Ministério da Educação para 2019. Destrinchando os índices, vemos que quando começamos a década 28% das crianças de 10 anos aprendiam o adequado em Português e hoje estamos com cerca de 60%.
Esses saltos foram maiores ainda regionalmente. O País começou a se preocupar com resultados tornados públicos. Prefeitos, secretários e governadores foram em busca do que fazer para melhorar e crescer no Ideb. E aí surgiram sucessos como Ceará e Pernambuco, Estados que saíram na década passada de resultados desastrosos na educação para as primeiras colocações nos rankings de aprendizado nacionais atualmente. Em menos de dez anos, os nordestinos viraram referência em educação e agora ensinam o Brasil.
Há criticas às avaliações em massa e a um sistema meritocrático, mas isso ajudou muito o Brasil a acordar para a educação nos últimos anos. Cobrar resultado, indignar-se. E neste 2019, tão desanimador para a área, a população foi às ruas, pela primeira vez em anos, por causa da educação. Quando o governo Bolsonaro cortou verbas das universidades públicas, exaltou a perseguição a professores por suposta doutrinação, a população gritou.
Mas é preciso mais. O Brasil tem de olhar para o Brasil. O MEC tem de olhar para o Brasil. Hoje já há experiências incríveis em vários Estados e cidades, não dá para achar que a solução são escolas militares. Não dá para perder um minuto sequer com embates ideológicos. Infelizmente, corremos hoje um grande risco de arruinar nosso pequeno avanço da década que termina e andar para trás. 

Renata Cafardo*, O Estado de S.Paulo
22 de dezembro de 2019 | 05h00

domingo, 15 de dezembro de 2019

O PAPEL DA ESCOLA

A escola tem passado por maus momentos. Nunca antes a instituição escolar brasileira foi tão atacada. Temos o Escola sem Partido, movimento político que acredita que o número de professores que busca atrair alunos a determinadas correntes ideológicas é enorme. Eles existem, mas não são tantos assim. Já o contingente de professores e alunos que sofrerá grandes consequências – fora os que já sofreram – resultantes dos princípios desse movimento será muito maior em pouco tempo. Se já não for.
Temos um bordão que foi, e ainda é, socialmente difundido por muitas pessoas e repetido por diversas escolas de que a sua função é a de instruir porque cabe à família educar. Quem repete esse conceito se esquece que, em família, os mais novos ocupam o papel social de filho, mas que, fora da família, exercem outras funções. Além disso, instruir e educar são dois conceitos inseparáveis: ao usar um deles, se aplica, necessariamente, o outro.
Temos também a educação domiciliar, que tem crescido. Pais de milhares de crianças decidiram deixar seus filhos fora da escola para ensinar os conteúdos escolares em casa. Deixam também os filhos longe do encontro com a diversidade de todos os tipos, é claro.
Como se não bastasse, pelo jeito agora teremos também um canal de atendimento, a ser criado pela ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, segundo notícias que li, para que professores denunciem – denunciem! – pais que não acompanham a vida escolar dos filhos. Agora, sim: a sociedade, em guerra declarada à escola, quer colocar pais contra professores e vice-versa. Em vez disso, seria importante entendermos melhor as funções da escola para defendê-la!
Quando uma criança nasce, a família se torna responsável por acompanhar seu desenvolvimento e ensinar o básico para que aprenda a conviver com os outros. Falar, ouvir, comunicar-se, fazer refeições, vestir-se adequadamente, colaborar. Esse é o processo que se chama socialização primária e coloca a criança no processo civilizatório. 
Ocorre que, em casa, todas as famílias têm as próprias regras e modos de viver e isso é possível porque a família vive na intimidade do espaço privado. E mais: toda a influência familiar que os pais podem passar aos filhos se deve à afetividade. O mundo fora de casa é bem diferente: tem suas próprias regras, gente de todo tipo, tem também ambientes hostis – algumas famílias também têm hostilidade com as crianças –, e demanda conhecimentos específicos para ser compreendido. Para isso serve a escola: colaborar para que os alunos compreendam melhor o mundo – e possam viver melhor – à luz do conhecimento sistematizado, para que eles aprendam a conviver com os diferentes de forma respeitosa. É a chamada socialização secundária.
A escola é a instituição que faz a passagem da família para o mundo. Não é fácil. Os mais novos tentam reproduzir na escola o que aprenderam em casa ou lá fazer o que não podem em casa. Por isso, a escola precisa ser cuidada, protegida. Professores e pais precisam ser parceiros sem misturar papéis. Chamamos de parceria boa quando os pais atendem às demandas que a escola encaminha a eles. Isso não é parceria. Quem frequenta a escola sabe que é comum ouvir a respeito de “pais ausentes” sobre os que não comparecem às reuniões por ela convocadas, sem ouvir a disponibilidade deles, ou de pais que não fazem a lição de casa com os filhos. 
Pois saiba que pai ausente em reunião escolar pode ser muito presente na vida dos filhos, e presente às reuniões pode não apresentar interesse verdadeiro pelo filho. A criança, ao crescer, enfrentará inúmeras dificuldades na vida, portanto deve ser estimulada a enfrentar suas próprias batalhas. E a escola é a primeira que ela deve enfrentar sozinha, sem a ajuda dos pais. Isso é o tal preparo para o futuro, para a vida.

TEXTO DE: Rosely Sayão, O Estado de S.Paulo
15 de dezembro de 2019

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Como dizer ‘não’

"Nossas crianças precisam de limites!”. Costumamos ouvir com muita frequência essa frase, não é verdade? Ouvimos nas escolas, nas famílias, de influenciadores digitais. Em todos os cantos. Mas, o que ela quer dizer mesmo? O curioso é que muitos entendem esse bordão de uma maneira diferente. Para muitos, limites quer dizer “não”. Aliás, na internet encontramos muitos artigos e textos que ensinam mães e pais a dizer “não” aos filhos. Como se precisasse! Dizer não é fácil. 
“Não pode bater no irmão”, “não vai jogar videogame todos os dias”, “não é permitido falar palavrão”, “não vai sair sozinho”, por exemplo. A lista de frases que começam com “não” que dizemos aos filhos diariamente é imensa. Não é à toa que uma das primeiras palavras que o bebê costuma dizer seja justamente essa, às vezes mostrada com o gesto de balançar a cabeça negativamente, ou com palavras. Mamãe, papai, não: essas são as três palavrinhas que eles adoram falar.
“Não” significa, sim, um limite. Mas, cá entre nós: dizer “não” aos filhos funciona sempre? Sabemos que só de vez em quando. Por quê? Em geral, de tanto usarmos essa palavra, ela acaba enfraquecida e perde sua potência. Quer um exemplo que, certamente, já deve ter ocorrido com você? “Mãe, vou pegar um chocolate”. “Não, filho, é quase hora do almoço”. “Ah, mãe, só um.” O filho insiste tanto que consegue o que queria. Pronto: o “não” perdeu um pouco de seu significado no relacionamento entre mãe e filho.
Isso dá para resolver: escolher quando dizer “não” pode ser uma boa. No exemplo acima, a mãe poderia substituir a negativa definitiva pela temporária: “ainda não”. “Ainda não, filho. Assim que você almoçar, você pega seu chocolate.” 
Outra maneira de fazer o “não” valer é agindo, e não só dizendo. “Filho, não sobe essa escada” precisa vir acompanhada de alguma atitude do adulto que irá impedir que a criança se aventure a subir a escada. Aí, o “não” ganha seu real sentido para a pequena criança.
Voltemos aos limites. Há quem entenda que dar limites aos filhos significa impor regras na vida deles e fazer “combinados”. Antes de tudo, uma reflexão a respeito dos tais combinados, tão presentes nas escolas e nas famílias. Combinar algo com alguém significa estabelecer uma ação com a qual o outro concorda, certo? Então, vamos esquecer os combinados com as crianças porque, primeiramente, elas em geral não concordaram com o proposto e, em segundo lugar, porque a maioria das vezes elas não dão conta de bancar o que foi combinado. Vamos lembrar que elas não têm autocontrole ainda. O fiador desse contrato é quem deve arcar com tudo, combinado?
Bem, limites como regras têm tido uso abusivo, se pensarmos bem. O que há de regra na vida de crianças e de adolescentes é uma coisa impressionante. Hora para tomar banho, como comportar-se à mesa de refeições (por falar nisso, é imperdível o episódio “Come tudinho” do Porta dos Fundos, no fim da coluna), horário para dormir, entre outros.
E regras existem para serem sempre cumpridas? Não: para serem transgredidas e burladas também! Basta nos lembrarmos de um jogo de futebol, por exemplo. O jogador pode avaliar o risco da penalidade e escolher transgredir a regra para levar vantagem. E muitos aplaudem, não é assim?
Além disso, as regras pouco ensinam: apenas sinalizam um comando que deve ser obedecido. Regras não ajudam a criança e o adolescente a crescer.
Já os princípios, sim. Um exemplo? Em vez de determinar um horário para o filho tomar banho, é melhor ensinar o princípio da higiene que ajuda a manter a boa saúde. Assim, se de vez em quando o banho falhar – o que pode acontecer por causa das circunstâncias –, nenhuma regra terá sido transgredida.
Claro que isso não significa que nenhuma regra deva existir para estabelecimento de limites. O exagero delas é que acaba limitando em demasia a vida dos mais novos.
Quem quer levar uma vida repleta de “nãos” e de regras? Nenhum de nós: já bastam os inevitáveis. Então, por que promover isso às crianças e aos adolescentes?

Rosely Sayão*, O Estado de S.Paulo
17 de novembro de 2019 | 01h00

sábado, 26 de outubro de 2019

Medíocres

Richard Nixon certa vez defendeu a mediocridade do seu governo dizendo que os medíocres também precisavam ser representados. Certa a intenção de Nixon. Os medíocres formam a maior parte da população de qualquer país e condená-los à irrelevância política ou a um governo de notáveis, de autocratas autoungidos ou de generais disfarçados seria uma maldade antidemocrática. O próprio Nixon foi um exemplo de mediocridade bem-sucedida, pelo menos de acordo com o seu conceito de mediocridade e sucesso. No fim, teve que deixar o governo por excesso de mediocridade, mas durante sua carreira foi uma inspiração para a categoria. Poucos medíocres chegaram tão longe.
O Brasil talvez tenha a maior quantidade de políticos medíocres por metro quadrado do mundo. Estão concentrados nas duas casas do Congresso Nacional, mas seu poder se espalha pelos legislativos e executivos estaduais e pelo Judiciário e chega ao Planalto como uma espécie de apoteose da teoria do Nixon. Congressistas brasileiros cuidam das suas vidas e dos seus bolsos e têm pronta a resposta para quem os acusa de medíocres: no Brasil, quem não é? Claro que há exceções, bons políticos cuja excepcionalidade só realçam a mediocridade da maioria. A escuridão em volta destaca o brilho. Mas a escuridão não para de aumentar.
No Brasil, a Natureza colabora com o artista. Fornece paisagens espetaculares, poemas prontos, beleza por todos os lados. E, quando é preciso, também fornece metáforas e ironias conforme a ocasião. Ninguém descobriu até agora de onde vem o petróleo que está sujando as nossas praias. Existe representação maior e mais apropriada para a nossa situação do que uma sujeira cuja origem ninguém sabe? De onde vem esse negrume nas nossas almas, de que abismo, de que culpa nunca saldada?
Estamos pagando pela nossa mediocridade, será isso? Nos atacam no que temos de mais bonito, as praias. A escuridão já chegou a Itapuã.
Texto de Luis Fernando Verissimo, O Estado de S. Paulo

domingo, 8 de setembro de 2019

Quem se importa com o menino que batia na menina?

Uns anos atrás, durante uma reunião de trabalho, eu e alguns colegas assistimos a um vídeo gravado em uma escola pública no interior do Ceará. Eram meus primeiros meses trabalhando em educação. 
“Eu era um menino levado. Batia nos meninos, batia nas meninas”, dizia o rapazinho, rindo de canto. “Eu tinha muita raiva, sabe? Não sabia ler, não sabia escrever, não conseguia ler as letras”, continuava ele, agora mais sério. “Aí eu bagunçava na aula, batia em todo mundo. Até que veio a professora e conversou comigo. Ela me prometeu, disse que eu ia aprender a ler. Eu disse pra ela que eu era burro, que não ia aprender, não. Mas eu aprendi, eu aprendi, acredita?”, e a tensão se desfazia num sorriso aliviado.
Diretor e alunos de escola de tempo integral em Fortaleza, no Ceará
Diretor e alunos de escola de tempo integral em Fortaleza, no Ceará - Jarbas Oliveira - 19.set.17/Folhapress
Quando o menino falou isso, a professora invadiu o vídeo e deu um abraço no rapazinho prestes a sair da infância. Meus colegas de trabalho começaram a chorar. E até uma pessoa meio insensível, como este que vos escreve, deixou escapar uma lágrima torta. 
Retomo esse vídeo por causa de uma entrevista recente do professor José Francisco Soares, ex-presidente do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais) e atual membro do CNE (Conselho Nacional de Educação). Especialista em avaliação educacional, Soares desenvolveu uma série de indicadores sobre desigualdades no ensino público. O objetivo é mensurar o quanto estamos privando as pessoas mais pobres de uma educação de qualidade. 
À Nova Escola, Soares disse: "Por que é que a gente não tem tido sucesso na desigualdade? Vários motivos: um deles é que a gente não está chamando a atenção para isso. Então, todo o esforço que está sendo feito é para dizer duas coisas: qualidade é nível e qualidade é pouca desigualdade entre as pessoas. A realidade educacional só é possível de ser descrita se você vê essas duas dimensões”.
Ele reconhece que o Brasil avançou muito no acesso à escola e, em muitos lugares, também progrediu em qualidade. Porém, o Brasil ainda educa melhor quem já tem mais oportunidades —e é bem menos generoso com nossos estudantes mais pobres (embora a situação esteja melhorando por causa do trabalho de Estados como Ceará e Pernambuco).
Diante desse cenário, Soares defende que o debate público deve focar em aprendizagem para combater as desigualdades. É um avanço e tanto diante do atual cenário, dominado por discussões inúteis sobre assuntos irrelevantes. 
E, nesse ponto, Soares compra briga não apenas com a extrema direita, ao falar de desigualdade. Ele também enfrenta uma parte da esquerda educacional, que detesta avaliações padronizadas. Esses setores entendem que as avaliações em larga escala reduzem os alunos a um indicador e produzem o efeito de educar para a prova. Embora exista verdade nessa crítica, ela geralmente superdimensiona os efeitos negativos e subestima os avanços. 
Continua Soares: "Quando o Saeb [sistema de avaliação de alunos no Brasil] se estabeleceu como programa nacional, qual foi a batalha que foi ganha? Foi a batalha do resultado, ou seja, nós passamos a acreditar que Educação tem resultados. E em setores grandes da educação, eles continuam não enfatizando resultado. A minha maneira de ver é muito simples: eu falo que o resultado é o outro lado do direito. Se não houve aprendizado, não me diga que houve direito. Essa foi uma batalha importante. Agora, vencido isso, nós temos que olhar as dimensões desse direito e dizer: 'olha, esse direito é para todo mundo'”.
A frase “o resultado é o outro lado do direito” é muito poderosa. Sem mensurar a aprendizagem das crianças, não temos como intervir. Sem intervenção, muitos outros meninos vão continuar batendo nas meninas.
Quando chegamos a esse ponto, a escola deixa de ser um lugar em que as pessoas vão para desenvolver a sua potência. Ela vira somente uma instituição de assistência social. É um trabalho importante, ainda mais num país com tanta gente pobre. Porém, é insuficiente. 
Afinal, hoje, muitos meninos vão acordar de manhã. Eles vão andar pela cidade e serão incapazes de ler uma placa na rua. Vão ter muita raiva, e com razão. Isso não é justo nem com ele nem com a sociedade, que será privada de todo o potencial que aquela pessoa tinha a oferecer para a nossa comunidade. Num cenário tão conturbado como o atual, precisamos focar no essencial. No fim do dia, é a vida de crianças como o menino do Ceará que está em jogo.

domingo, 25 de agosto de 2019

Foi a mulher!

Adão inaugurou a prática da transferência da culpa ao dizer que foi Eva que deu a ele o fruto da árvore. Somos ágeis em inventar desculpas e julgar com dois padrões. Os americanos chamam de “double standard”. Trata-se da clássica dubiedade que nós, filhos de Eva, carregamos, na nossa moral ambígua. Quase sempre começa com a régua para medir os atos dos meus filhos e o que penso dos rebentos alheios. Depois é pelo meu time, sempre afetado pela arbitragem, que favorece o adversário, exatamente como diz qualquer torcedor do time contrário.

Participei de dezenas de bancas na minha vida. Todos os derrotados tinham uma certeza: os julgadores favoreceram o vencedor. Denúncias contra o grupo político que eu apoio? Sempre, invariavelmente, tramoias desonestas e caluniosas de uma imprensa vendida. Contra meus inimigos? É pouco! Há muito mais por denunciar. A imprensa sempre, sem exceção, persegue meu candidato e favorece o outro.

Tenho, pelo menos, duas hipóteses diante de mim em todos os casos do parágrafo anterior. A primeira é supor que meu filho não personifique um gênio, meu time tenha desempenho medíocre mesmo, o candidato vencedor do concurso seja melhor do que eu, meu político de afinidade, realmente, é um ladrão ou um incompetente, talvez ambos.

Essas são as hipóteses incômodas, porque significam saber que errei, que gerei algo ruim, que julgo mal ou que torço por picaretas. Pensar assim é trazer o mal para dentro de si e reconhecer-se errado. Dolorosa estruturalmente, a hipótese que me implica é substituída pela mais fácil, um ópio irresistível ao alcance da minha mão: o problema está no outro.

A desculpa anterior é a suprema forma de conforto. Colocar a culpa em terceiros, saber que não sou o autor de um delito ou erro, que não coaduno com práticas maléficas, sou o bem, o bom e o belo: nada causa maior relaxamento de consciência. Ah, como é fundamental estar do lado certo... Que alegria temos em contemplar o deslize alheio!

Sartre chamou de má-fé o ato de transferência de responsabilidade. Tecnicamente é um pouco mais em Filosofia: trata-se de negar a própria liberdade e passar a supor que eu seja um objeto, ou uma coisa, algo sem a capacidade de escolher. Adão inaugurou a prática da transferência da culpa.

Questionado por Deus, lembrou que foi o Criador que a deu por companheira, logo, tentou trazer o Chefe para o ato ilícito (Gn 3, 12): “Foi a mulher que me deste por companheira que me deu do fruto da árvore, e eu comi”. O diálogo tem certo brilhantismo: “Você me deu a companheira, eu não pedi, foi iniciativa Sua e ela me colocou a perder”. Incluo o Todo-Poderoso na confusão e ainda descarrego na esposa. A primeira mulher seguiu na mesma toada: “Foi a serpente”. Não funcionou, os três envolvidos no processo foram punidos para sempre.

Curiosamente, das quatro personagens do diálogo, a serpente foi a única que não se pronunciou, nem buscou culpar a outro. O terceiro capítulo do Gênesis termina com Deus reconhecendo que agora o homem conhecia o bem e o mal. O novo conhecimento traz o que chamamos de Teodiceia: a origem daquilo que foge ao correto. O debate da origem dos desvios despertaria centenas de teólogos e filósofos. A maioria dos filhos de Eva já sabe a resposta: a culpa é do outro, sempre alheia, eternamente fora de mim.

Os primeiros pais, no último dia do Éden, definiram uma questão estrutural. Que bálsamo! Que resposta! Que achado! “Eu dirijo bem, mas há cada louco nas ruas.” “Eu voto com consciência, porém como outros eleitores não percebem o óbvio?” “Por que os outros falam tão alto?”

Que delícia ser quem eu sou. Que dor deve carregar aquela pessoa sendo quem ela é. Trata-se do nosso miniéden, o pequeno jardim paradisíaco da minha consciência superior ao mundo estranho externo. Aqui, a consciência com má-fé estabelece seu microparaíso a partir do seu sofá. É a posição que irritava Franz Kafka em relação ao seu pai (texto Carta ao Pai). Hermann Kafka sentava-se na sua poltrona e atacava tudo e todos, da cidade de Praga ao Imperador, e ninguém estava certo ou agia bem, apenas ele, o pai, que tanto ressentimento gerou no jovem Franz.

Eu posso estar certo? O erro pode ser alheio? Sim é a clara resposta às questões. Agora: eu posso estar sempre correto e o erro do mundo seria sempre externo a minha cândida pessoa? Não, respondem as vozes da razão e do bom senso.

Incluir-se nas análises é, sempre, um desafio enorme. Possivelmente, a “ilha do bem” na qual imaginamos nosso exílio no mundo de gente complicada seja a suprema zona de conforto criada por todos. Sair dos espaços tradicionais, que nossas trilhas de sinapses constituíram desde a primeira mentira contada à mãe ou à professora, talvez seja um desafio enorme, quase épico. Tenho feito o exercício libertador e áspero de evitar o erro de Hermann Kafka.

Um dia, o genial filho dele fez uma carta manuscrita de quase cem páginas irritado com a isenção de responsabilidade do progenitor. Talvez, apenas talvez, nossos filhos não tenham o mesmo talento do autor da Metamorfose e, sem pode traduzir sua dor em belo texto literário, restrinjam-se a pequenas falas entretecidas de decepção amarga em algum obscuro grupo de WhatsApp.

Pior do que ofender um gênio é ofender fofoqueiros ressentidos. Boa semana para todos nós.

Leandro Karnal, O Estado de S. Paulo
28 de julho de 2019

sexta-feira, 24 de maio de 2019

O SONHO


Sonhe com aquilo que você quer ser,
porque você possui apenas uma vida
e nela só se tem uma chance
de fazer aquilo que quer.
Tenha felicidade bastante para fazê-la doce.
Dificuldades para fazê-la forte.
Tristeza para fazê-la humana.
E esperança suficiente para fazê-la feliz.
As pessoas mais felizes não tem as melhores coisas.
Elas sabem fazer o melhor das oportunidades
que aparecem em seus caminhos.
A felicidade aparece para aqueles que choram.
Para aqueles que se machucam
Para aqueles que buscam e tentam sempre.
E para aqueles que reconhecem
a importância das pessoas que passaram por suas vidas.

CLARICE LISPECTOR

domingo, 28 de abril de 2019

Aprendizagem e vontade

“Aprender a Aprender” – Esse deve ser o verbo a ser conjugado quando se quer obter bons resultados na aprendizagem. Mas, para que isso ocorra é também necessário adotar alguns métodos e hábitos que sistematizem o estudo.
O aprendizado é algo que permeia a vida de qualquer indivíduo, independente de sua formação escolar, e ocorre a todo instante, pois é incrível a capacidade de captura e armazenamento de informações que possui o cérebro. Por exemplo, você sabia que mesmo durante o sono o cérebro está ativo? E que o sono é fundamental para o aprendizado? Pois é, muitas vezes as pessoas não se dão conta, mas o aprendizado abrange muitas situações desde o psíquico da pessoa como o comportamento, a postura, a atenção até o físico-corporal como a saúde, o sono, a alimentação etc.
No entanto, é bom saber também, que o fato de o aprendizado ocorrer quase que ininterruptamente, nada impede que o homem possa interferir neste processo para abstrair um aproveitamento mais vantajoso para si. Até porque, quem é que nunca sentiu a sensação de que não está aprendendo o que gostaria de aprender? A experiência é com certeza a melhor prova de que o aprendizado ocorre conforme a vivência, e que varia de caso para caso. 
Em alguns casos, o aprendizado é natural e instintivo como ocorre na fobia por algo, em que são necessários apenas poucos instantes com uma situação que aspira negativamente para que o cérebro capture a mensagem de perigo e armazene uma informação de medo. Já em outros casos, como aprender uma fórmula de matemática ou compreender as regras de gramática, os poucos instantes serão insuficientes para guardar de forma completa e correta a informação, nestes casos é necessário buscar o aprendizado com vontade, dedicação e curiosidade.

Publicado originalmente em http://marciopontocom.blogspot.com/2009/09/ em setembro de 2009.

domingo, 17 de março de 2019

A educação pela treva

O texto não é meu, mas não pude deixar de compartilhar...
Como se educa um filho num país desses? Como dizer "e eles viveram felizes para sempre, agora dorme tranquilo, papai e mamãe tão na sala", quando na sala papai e mamãe não estão nada tranquilos vendo que a história caminha para longe de um final feliz? Como dizer "não precisa ter medo do escuro", "monstro não existe", quando papai e mamãe são obrigados a sussurrar ou falar outra língua ao conversar na frente das crianças? 
"Um homem que não quis se identificar, tio de dois mortos, um de 16 anos e outro de 18, afirmou que os policiais esfaquearam os suspeitos depois de atirar nas pernas, para impedir que fugissem". "Um dos suspeitos aparece com o intestino completamente para fora do corpo". "O deputado estadual Rodrigo Amorim (PSL), que mantém bom trânsito com o governador, anunciou nesta terça que propôs homenagem ao Choque do Bope. 'Eles mostraram aos marginais que a polícia do Rio de Janeiro tem que ser respeitada. Foram 13 CPFs cancelados'". 
Rodrigo Amorim é aquele que, durante a campanha, comemorou o "cancelamento" de outro CPF, o da vereadora Marielle Franco, quebrando a placa com seu nome. A placa quebrada, agora emoldurada, decora o seu gabinete, como o chifre de um animal abatido. E eu lendo pro meu filho "O Reizinho Mandão", ensinando que o autoritarismo destrói a autoridade. Desculpa, Ruth Rocha, mas acho que de agora em diante embalarei o sono do meu filho com "O Senhor das Moscas".
Eu queria muito ter que responder perguntas simples do tipo "Como os bebês são feitos?", mas no Brasil o tabu é mais embaixo. "Por que ela dorme na rua?". "Por que ela é pobre?". "Por que ela não tem trabalho?". "Por que ela não foi pra escola?". "Por que a mãe dela também não foi pra escola?". "Por que a avó dela também não foi pra escola?". "Por que as pessoas pobres são sempre marrons?". O que balbucio à guisa de resposta tem a eficácia de um saquinho de Floc Gel sobre a lama da Vale: "Elas não são marrons, elas são negras". 
Pra que me agachar no chão durante a festa e explicar pacientemente ao meu filho que ele tem que emprestar o Batman pro Guilherme "porque se todo mundo emprestar os brinquedos pra todo mundo, todo mundo vai poder brincar com todos os brinquedos"? Se eu fosse sincero e educasse pra realidade brasileira e não pros meus delírios utópicos ultrapassados eu deveria dizer 1) "Não empresta, você é maior do que o Guilherme, empurra o Guilherme, pisa no Guilherme, cospe no Guilherme e mostra quem manda" ou 2) "Empresta, o Guilherme é maior do que você, se você não emprestar o Guilherme vai te empurrar, vai pisar em você, cuspir em você e mostrar quem manda".
A dissonância entre a realidade brasileira e o que meu filho aprende em casa e na escola é da ordem da psicose. Dois mais dois são quatro, nós insistimos em dizer, mas sabemos que se você tiver os contatos certos, dois mais dois são cinco ou quinhentos, assim como também pode ser zero ou menos mil se você tiver nascido no lugar errado, com a cor errada, o gênero errado, a orientação sexual errada.
Não, filho, os bons não vencem no final. Não, os maus não serão punidos. Não, ser legal com os outros não faz com que os outros sejam legais com você. Mas veja: você é branco, é homem, é bem-nascido. Você não pedirá dinheiro pelas ruas, você não terá seu CPF "cancelado" pela polícia. Aqui, neste reino distante, tudo conflui para você chegar a ser um reizinho mandão, um senhor das moscas com um chifre pendurado na parede. Acho que a minha tarefa como pai é te ensinar que este não é um final feliz.

Antonio Prata
Escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”.

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