domingo, 31 de outubro de 2010

Eras de extremos


A história pertence a quem sabe contá-la. O desenhista americano Robert Crumb é um historiador. Depois que relatou os anos 60 americanos em livros e revistas, aquela se tornou a era Crumb. Nesse particular, o artista de 67 anos, filho de fuzileiro naval, que começou desenhando cartões de aniversário, ombreou-se a poetas distantes, Homero entre eles. O autor da Ilíada fez com que a Guerra de Troia, possivelmente ocorrida entre os anos 1300 e 1200 a.C., jamais retratada por um troiano, ficasse para sempre registrada sob sua perspectiva grega de narrador. A busca por liberdade dos jovens norte–americanos caídos por drogas, sexo, música e gurus na segunda metade do século XX ganhou em Crumb um retratista. Sem ele e sua geração, os contestadores de ontem talvez nadassem hoje no esquecimento.
Com Franz Kafka (1883-1924), um autor no limiar da queda de um império, o dos Habsburgo, aconteceu coisa parecida no início do século passado. Um dos maiores escritores do Ocidente, ele não relatou os terríveis e concretos fatos a envolver seus vizinhos, parentes e amigos subjugados no gueto de Praga. Mas descreveu em pormenores a paisagem mental do período, o pânico e o horror diante da febre eugênica e do racismo, como raros fariam literariamente, antes ou depois.
Sem Kafka, dificilmente estaria completa a história do homem moderno, não só a do judeu, que assistia à passagem de um poder aristocrático para aquele burguês, desencantado em relação às promessas de progresso científico das quais só uma elite econômica realmente se beneficiaria. Ele compôs uma linguagem nova para acompanhar suas descobertas. Sua narrativa fabular e direta soltava o leitor em uma atmosfera irreal. Mas a sensação de irrealidade era temporária. Repentinamente, o que parecia sonho poderia ser compreendido como fato real, ainda por cima ameaçador.
Quem organiza a história é o ser que a escreve. Crumb sabe disso bem. Aliou-se ao especialista em adaptações literárias para os quadrinhos David Zane Mairowitz, nascido nos Estados Unidos no mesmo ano de 1943 e graduado em Letras e Dramaturgia, para compor Kafka de Crumb (Desiderata, 184 págs., R$ 39,90). O livro, reeditado no Brasil depois de quatro anos, agora em formato acertado, grande, é essencial à compreensão da obra do escritor. No volume, o desenhista ilustra trechos de obras de Kaf-ka como A Metamorfose, A Toca, O Processo, América, Um Artista da Fome e a inacabada O Castelo.
A biografia em quadrinhos deseja ressaltar que Kafka pode ter sido tudo, menos “kafkiano”, segundo o sentido corrente de tal adjetivo. Dito de maneira coloquial, “kafkiano” evoca as coisas terrivelmente surreais. Porém, Mairowitz menospreza esse sentido, segundo ele nascido de quem jamais leu Kaf-ka direito. O autor vê em seu biografado, isso sim, um certo humor, o mesmo que acomete os judeus especializados no autodeboche. Seu hábito de apequenar-se, traduzido em novelas e contos nos quais ele se transforma em inseto, toupeira, cão ou macaco, teria nascido da ameaça diária do antissemitismo, que interiorizava. E isto, sustenta, é o mais kafkiano que há.
“O que tenho em comum com os judeus? Eu não tenho nada em comum comigo mesmo”, afirma Kafka, para que Mairowitz ligue esse raciocínio do escritor a uma “autodesaprovação- -humorística, exatamente o que ele tinha em comum com os judeus”. Mais cedo ou mais tarde, diz o biógrafo, até o representante da etnia que mais se auto-odiasse tinha de rir de si mesmo. “As narrativas de Kafka, ainda que austeras, quase sempre também são engraçadas”, escreve Mairowitz. Aqueles que conheceram bem o escritor o viram amável, sorridente, bom ouvinte, mas de alguma forma inacessível e distanciado. “Sua capacidade de engolir o medo dos outros e dirigi-lo contra si mesmo, em vez de contra sua origem, é a matéria-prima de toda a sua obra. Em nenhum outro lugar isso é mais aparente que em sua relação com o pai.”
Pisado psicologicamente por Hermann Kafka, o escritor estaria, em sua literatura, a demonstrar a necessidade de esconder-se, de rastejar, de fugir para a morte, ligando à sujeira qualquer tentativa de vivenciar o prazer. É o pai quem o impede de crescer, de amar as mulheres, e ele as toca com repulsa. Sua irmã mais nova, Ottla,- “literalmente” o carrega com suas asas por esse “difícil mundo”, segundo se lê em uma frase ilustrada por Crumb no livro. A última paixão de Kafka, ocorrida quando ele já sofria de tuberculose, foi Dora, 19 anos, de uma família judia ortodoxa. O casal sonhava em mudar-se para Tel-Aviv, abrir um restaurante judeu no qual Dora cozinharia e Kafka seria um garçom. Humor, muito humor.
É outro, bem diferente de Kafka, o artista Crumb. O talento para narrar e se autodepreciar comicamente basta para compará-los. Mas, sem as descobertas de Kafka, talvez ele não caminhasse em liberdade. Diz-se inspirado em S. Clay Wilson: “Ele foi uma revelação para mim. Desenhava toda e qualquer maluquice que passasse por sua cabeça, sem se importar com o quanto ela era pervertida, violenta ou sexualmente bizarra. Ele simplesmente desenhava. Eu pensei: ‘Pra que ficar se censurando? Põe tudo pra fora e depois vê no que dá’”.
Crumb sobreviveu a uma família atormentada e, conforme diz na história “Eu agradeço! Eu agradeço!”, de 1989, hoje se considera muito feliz. Sabe desenhar. Ganha dinheiro com isso. Adora seus discos de 78 rotações. Tem água quente em casa. Uma banheira confortável. Hoje, mora até mesmo na França com a família, espalhado por três casas no interior do país, onde repousa seu enorme acervo de livros e discos. É casado com a também desenhista Aline Kominsky, bela aos 63 anos, pai de Sophie, de 29, e avô de Eli Robert, de 10 meses, a quem a avó, durante um jantar em São Paulo no mês passado, carinhosamente chamava “Buda”. Dadas sua bonomia e doçura, o bebê difere em muito da criança que sua filha foi, ela explicou. Sempre disposta a conversar, assombrava-se com a ausência de planejamento na capital paulista, em que, contudo, repousam grafites únicos. “Disseram-me que pareço com alguém chamado Fernanda Young (a apresentadora e escritora brasileira). Isto é bom ou ruim?”
Crumb especializou-se em narrar a própria vida com autoderrisão e humor, e Aline, nesse quesito, também o acompanha. Meus Problemas com as Mulheres (Conrad, 106 págs., R$ 49,90) mostra-o novamente diverso de Kaf-ka, divertindo-se com as garotas fornidas de corpo como o dela, e desencanadas. Neste livro que coleta histórias publicadas entre 1964 e 1991, Crumb, sempre à mão esquerda, ironiza seu ser franzino, a farra sexual em que mergulhou a própria vida desde que os anos lisérgicos lhe deram fama e sua falta de sinceridade quando despertado para o sexo feminino. Ele teve mulheres, ao contrário de Kafka. Presenteou-as com esculturas e andou de ônibus pela noite chuvosa, envergonhado, em troca de cavalgá-las por trás.
O artista reconhece que sua obra gostosamente autobiográfica e irônica lhe causa problemas de convívio no mundo real. “A minha obsessão por mulheres grandalhonas interfere na forma como algumas pessoas apreciam o meu trabalho!” é o título que ele dá a um texto reflexivo no qual admite a dificuldade em lidar com leitores incautos ou, mais comumente, não leitores mal informados sobre sua fome de amor. Incompreensão foi o que Crumb experimentou quando, muito bem tratado pela direção da Festa Literária de Paraty, em julho deste ano, acompanhado todo o tempo por guarda-costas pelas ruas da cidade, viu-se, na companhia do amigo Gilbert Shelton, o criador de Freak Brothers, metido em um debate para o qual não havia as boas perguntas.
“Foi um desperdício, uma coisa sem graça”, disse Aline sobre o ocorrido. Chamada pela mediação a intervir, ela tentou puxar uma ideia cômica, mas aparentemente era tarde para salvar o evento. Crumb escreve sobre si, mas por que falaria sobre si? “Muitas pessoas que amam o trabalho dele e de Shelton tiveram, ali, uma oportunidade perdida.” Problemas com as mulheres, Robert Crumb? Com esta, aparentemente nenhum.

Nenhum comentário:

Postar um comentário